domingo, 29 de outubro de 2023

Em Memória de Joel Constantino

Pela segunda vez, venho aqui ao blog lembrar uma pessoa que partiu e que trabalhou no mundo das dobragens em Portugal.
Alguém que, da minha perspetiva, era uma LENDA das dobragens:
Joel Cândido dos Santos Constantino.

(De acordo com a Wiki Dobragens Portuguesas, Constantino faleceu neste ano 2023, já no mês de Abril. Porém, eu só soube recentemente. Sendo assim, mesmo com atraso, deixo aqui qualquer coisa como o meu in memoriam.)

Tal como da outra vez que fiz um post assim, não conheci pessoalmente o dobrador em questão, portanto não faço ideia de como Joel Constantino era como pessoa. Mas, no que toca ao lado profissional, não é exagero nenhum dizer que era um dos meus dobradores portugueses de eleição. Top 5, muito provavelmente. E isso quer dizer muito num país como este, tão cheio de belas dobragens e ainda mais belas vozes. E se é verdade que a voz do sr. Constantino não foi tão omnipresente na minha infância - e na de muitos mais, aliás... - como a de Carlos Freixo, a de José Raposo ou a de Sissa Afonso, também o é que, desde muito novo, houve qualquer coisa nas vozes que Joel Constantino fazia que as tornaram mais memoráveis para mim.

Imagem disponibilizada pela edição online do jornal O Templário.
Joel Constantino no centro.

É certo que se pode questionar se era a voz do dobrador per se que era assim tão marcante ou se parecia mais marcante do que era devido à grande importância que algumas das suas personagens tiveram para mim. Bom, é possível, e eu também não sou imune a outros vieses como os que a nostalgia traz. Contudo, este assunto daria pano para mangas, portanto prefiro não me alongar sobre este assunto; deixo só aqui esta salvaguarda. Posto isto, a quantidade de personagens que Joel Constantino dobrou que são incontornáveis para mim é alta. E gostaria de falar um pouco sobre elas.

Quando penso no nome Joel Constantino, penso imediatamente no Gaspar. Sim, o Gaspar do programa O Jardim da Celeste. Esse programa foi sem dúvida um dos mais importantes dos meus primeiros anos de vida e o Gaspar sempre foi uma das minhas personagens favoritas dessa obra. Ainda que o Sócrates pudesse ser mais divertido ou a Olívia ser mais uma fonte de cenas memoráveis, o Gaspar era para mim aquela personagem da qual eu ia gostar em quase todas as cenas com ele. O moço era um pouco como a criança ideal: simpático e afável mas ligeiramente precoce e com uma certa dose de maturidade pouco comum para alguém tão novo (provavelmente causada pelo facto de o Gaspar ajudar regularmente os seus pais na quinta onde cresceu, o que levava o pequenote a ter uma maior consideração por todos os seres vivos - sim, animais e plantas incluídos - e uma melhor preparação para a vida em comunidade e para a luta pelo bem comum). Talvez por todas estas características, o Gaspar deve ter sido a personagem do Jardim da Celeste que menos problemas (ou desafios, talvez?) causava na carrinha da Celeste. Era provavelmente a marioneta que menos se zangava e menos fazia alguém zangar-se. E, também por ser tão impecável, o Gaspar inspirava-me. Ele mostrava-me mais sobre como ser boa pessoa. Eu sentia-me inspirado e acabava com mais vontade de melhorar. Um belo feito para uma "simples" personagem de um programa direcionado aos petizes.

O Gaspar tinha uma voz um pouco fininha, ligeiramente parecida com a do Tico. Refiro-me ao Tico de A Volta ao Mundo de Willy Fog, outra personagem inesquecível da minha infância. O Tico, amigo do Bigodão, era um ratinho dinâmico que agia quase como um alívio cómico numa história que era um pouco séria. Era muito agradável ouvir aquela vozinha levemente esganiçada - no bom sentido - a acrescentar uma dose de humor à viagem pelo mundo e a mostrar curiosidade por muitas coisas.
Neste momento, alguns leitores poderão não concordar muito comigo pois, da sua perspetiva, a identidade do Tico não está ligada a Joel Constantino, mas a Irene Cruz. E sim, acontece várias vezes: uma personagem é apresentada, em diferentes momentos da História, com vozes diferentes. E depois cada um prefere a sua. O mesmo não se pode dizer do Max, personagem dos Tweenies. Afinal, até hoje, só foi feita uma dobragem oficial dos Tweenies...sendo assim, não há "concorrência" e todos os que viram o programa britânico se deverão lembrar do Max com a voz de Joel Constantino. E ainda bem, porque era muito boa. Era uma personagem bem mais velha do que o Gaspar e o Tico e a voz do boneco refletia isso mesmo. O Max, assim com a Judy, era um belo apoio para os jovens Bella, Milo, Fizz e Jake, pois era um adulto que lhes ensinava umas coisas sobre como lidar com emoções negativas e como gerir conflitos. Tweenies era um programa bastante educativo, e foi pela agradável e inolvidável voz do Max que muitos ouviam lições valiosas. E bem me lembro do Max a cantar canções bem alegres, como aquela "Que posso fazer com este cabelo?". E a contar história como a do Pernas Para que te Quero.

A descrição deste vídeo diz justamente
"Em memória de Joel Constantino".

Porém, as personagens que eu referi até agora são aquelas das quais eu, pessoalmente, me lembro mais. E muita gente poderá não as conhecer. Bem, se vos facilitar a vida, posso dizer-vos que Joel Constantino cantou pelo menos uma canção que diferentes gerações terão facilidade em identificar. Aqui vai: Joel Constantino cantou nada menos do que...o tema de abertura de Bob, o Construtor! Ah, pois é! Sempre que alguém usa essa música numa qualquer cerimónia de jardim de infância ou sarau de escola, é a saudosa voz de Joel Constantino que estamos a ouvir! E sempre que alguém canta uma paródia para maiores de 12 dessa mesma música...bem, nesse caso não é a voz do dobrador que estamos a ouvir, mas de certa forma estamos a ouvir algo que só chegou a nós através do cantar de Joel Constantino. Afinal, se o dobrador não tivesse feito um belo trabalho a cantar o tal tema de abertura do desenho animado, quase ninguém se lembraria da canção, sequer.

Resta eu arriscar descrever a voz de Joel Constantino. Ou, pelo menos, a voz como eu a costumava ouvir na televisão, não é? Bem, é mesmo difícil descrever...a primeira palavra que me ocorre é "agradável". O sr. Constantino dava muitas vozes que, sem ser uma voz daquelas que faz uma audiência inteira voltar-se para ver quem está a falar, era muito agradável de se ouvir...fazendo novamente o paralelo do tio, eu diria que ouvir a sua voz era como ouvir aquele nosso tio que, mesmo não sendo uma das pessoas mais mencionadas da família, é sempre afável, muito diplomático e sabe dar conselhos de vida muito bons e recheados de sobriedade e de razoabilidade. Um tio discreto, mas nem por isso menos importante...esse tipo de tio. Pelo menos era isso que a voz me sugeria. Já quando Joel Constantino fazia vozes mais fininhas para personagens mais novas ou de tamanho reduzido, a sua bela voz soava (ainda) mais divertida e, em termos meramente descritivos, talvez um pouco mais "arranhada". Mas era um arranhado agradável de ouvir e que trazia alegria. E creio que é justo dizer que, nesses casos, o ator soava efetivamente mais novo do que a idade que realmente tinha.

Uma palavra ainda para um nicho extremamente recôndito da dobragem: a dobragem de personagens de jogos de PC em CD-ROM. Neste nicho do qual poucos se lembram, Joel Constantino deu voz a uma personagem importante para algumas pessoas. Qual? O Professor Isca Leto, do jogo A Aventura do Corpo Humano! Ah, a nostalgia...

Este vídeo insiste muito no jogo Dia-a-Dia.
E ainda bem, porque esse era o meu favorito! :)

Entre as dezenas de papéis que Joel Constantino desempenhou no seu trabalho de dobrador, é difícil fazer uma lista pequena para tentar reunir outros dos seus papéis mais marcantes. Mas é bem possível que alguém que veja esta lista reconheça algo nela. Cá vão, então, mais algumas obras às quais o dobrador emprestou a sua voz:

Animaniacs
Barbie: Princesa Rapunzel
Contos de Grimm
Hey Arnold!
Power Rangers: Turbo
Puzzle Park
Rua Sésamo
Samurai X
Teletubbies

E voltando só um bocadinho ao início...em jeito de despedida, queria usar novamente a palavra lenda. Imagino que muita gente possa discordar, mas para mim é difícil falar muito de Joel Constantino sem o indicar como uma autêntica lenda da dobragem portuguesa. Quer dizer, são muitos trabalhos, durante muitos anos, e com muitas personagens marcantes muito diferentes. E, admito, o facto de nem a Wikipédia lusa ter tido uma página para Joel Constantino durante anos a fio (e, à data deste post, acho que ainda não tem...) também contribui para um certo mistério no ar. E para fazer um cidadão comum ver um dobrador como um mito. No bom sentido, claro!

Ainda que muito atrasado, digo: vá em paz, sr. Constantino. E condolências à família.